domingo, novembro 07, 2010

papai e mamãe, obrigado por me matarem.

Quando eu nasci, eu ainda não sabia de nada sobre nada especialmente sobre mim mesma. Meus pais sabiam o que a vida lhes ensinara por 35 anos, mas eles não sabiam nada sobre mim. Eu deveria ser mais um bebê gordinho, careca, chorão e cagão. Eu era indefesa e vulnerável a tudo e a todos. Eu era só um bebê que não foi interrompido. A priori, eu nasci para trazer alegria para um lar.
O bebê cresceu. Ele fala, continua gordinho, tem cabelos e intestino preso. Sabe alguma coisa sobre si mesma, sua vulnerabilidade ainda existe mas aprendeu a se defender. Seus pais continuam não sabendo nada sobre ela.
O dia que eu comecei a morrer foi o dia que comecei a crescer e conhecer a vida através de meus pais. Eles me ensinaram com muito amor e carinho que a desobediência deveria ser punida com xingos e surra. Também me ensinaram que era muito mais importante manter a casa limpa, as roupas limpas e a boca limpa do que manter uma imagem de liberdade. Porque os vizinhos e a comunidade protestante deveriam dar nota 10 para uma progenitora e um progenitor que sabe manter rigidamente a casa limpa, as roupas limpas e a boca de seus bebês limpa.
Meus dias começaram a ter menos esperança ainda quando entrei na escola e as diferenças começaram a brilhar diante dos meus olhos. Sabe quando a professora te chama de burra porque você não entendeu um problema matemático e tudo que ouve de seus pais quando em pânico pede ajuda (não sabe ainda ao certo porque matemática é tão tragicamente importante) e tudo que ouve é “estude mais!” ?
A escola é um lugar muito interessante para começar a entender a vida e o valor da família. É lá que começam a apontar características suas e de sua personalidade e ai de uma forma bem agradável sua família a transforma em defeitos. Afinal se você é gordo é porque realmente come demais, se sua mochila não é da marca mais usada é porque realmente não é boa o suficiente para usá-la afinal nunca têm dinheiro mesmo. Se seu cabelo é feio aceite, suas tias 40 anos mais velhas que você nunca usaram shampoo e nunca reclamaram. Se não tem nenhum talento para demonstrar na escola logo sua família a aconselha deixa pra lá, afinal talento é coisa dos outros. Sensacional!
A adolescência é o auge do caos especialmente se seu pai por algum motivo ou outro tornou-se alcoólatra e resolveu que tem 18 anos novamente saindo com todas as mulheres que você jamais quis saber. AH! A experiência torna-se mais agradável ainda quando sua mãe deprimida a culpa por ter nascido ( ??????), afinal se você – aquele lindo bebê fofuxo – não tivesse nascido ela não teria que carregar o sacrifício de continuar casada com o seu progenitor exclusivamente por dinheiro e continuar lhe proporcionando uma vida legal pra caramba sob grades demonstrações de humilhação, alcoolismo e estupidez. AH, mas nada disso é tão importante como manter a casa limpa, as roupas limpas e a boca limpa. Afinal o que a comuna protestante pode dizer sobre isso?
A vida torna-se breve quando sua querida mamãe (o alvo de todos os seus cartões de “feliz dias das mães” feito na escola, sabonetes enfeitados, desenhos coloridos e sachês de sabonete gessy) também é sua costureira. Fantástica a forma com que ela deprecia seu corpo roliço e sem cintura, como ela a culpa de querer ser feliz comendo.

“gostaria de entender porque os progenitores te entopem de comida quando você não pode se defender e dizer não, e quando você cresce e quer comer dois ou três pães e comer seis pedaços de pizza você é um guloso? Primeiro te chamam de fofinha e uma belezinha porque você é gordinha, depois subitamente você é uma gorda sem forma que jamais vai achar alguém que te ame porque você é gorda, alguém pode me explicar isso?”


É na adolescência também, que seus órgãos vão se desfalecendo. Você descobre que as pessoas que dizem se preocupar com você são as que mais apunhalam a alma. Dizem o que você pode, o que você não pode ser. O que é apropriado e o que é inapropriado. Entre tudo o que você não deve fazer ou ser,porque é demasiadamente humano e ser humano é pecado, encontram-se castrar seu cérebro, sua boca, suas perspectivas, seus sonhos, seus amores, seus prazeres suas reflexões. A única coisa apropriada a se fazer é manter a casa limpa, a roupa limpa e a boca limpa.
Você chega aos 20 e poucos. Se casa. Inacreditavelmente seus pais, com seu consentimento, te entregam a alguém. Isso é considerado normal. E você não é exatamente o que todos esperam de você. Você tenta se manter viva. Entra em coma, sai do coma, entre em coma novamente. Sobrevive graças aos aparelhos e lá no final do túnel entre aquela luz chamando seu nome e a enfermeira te entubando novamente você pensa se aquele é um dia perfeito para morrer. Você não é o que seus progenitores queriam que você fosse. Você não é o que a mídia te ensinou que é bonito ser. Você não tem nem a boca limpa e nem a roupa limpa o suficiente para o que a comuna protestante ensinou você a ser. Então você perdidamente se culpa porque por um milagre ou não, você não se sente culpada mas você persiste em se sentir culpada por não ser culpada. Entende? Você está em coma. Induzido por você mesma.
Você chega milagrosamente aos 30. Sua respiração é fraca. Está cansada. Você tenta se esquentar roubando algum raio do sol, mas tudo que consegue é sentir frio. Talvez você seja feliz, mas seus progenitores não podem perceber que é feliz. Eles não são, então você também não pode ser. Entre um coma e outro, você chora sozinha, nas madrugadas. Você está sozinha. Você continua sozinha. E tudo que quer é sentir o seu pulso bater. Mas tudo que seus progenitores querem de você é que você mantenha a casa limpa, a roupa limpa e a boca limpa.
Você está ali, cheia de aparelhos te ajudando a respirar e manter seu coração batendo e tudo que te pedem é para manter a casa limpa, a roupa limpa e sua boca também.

Você tenta que enxerguem você,que te ouçam, então você grita dizendo “Hey papai, mamãe por favor olhem aqui, eu ainda estou respirando....”

É tarde demais,
Seus progenitores brigam com você porque você não mantém a casa limpa, as roupas limpas e a boca limpa.

Em seu funeral, todos choram. Algumas pessoas falam sobre a morta. Outros sobre carros. Outros falam sobre o tempo. Os mais chegados tentam entender como tudo aconteceu. Seus progenitores tentam entender como vão lidar com a dor da perda.

Á sete palmos, você sorri. É um dia perfeito. Para recomeçar.

2 comentários:

Letícia...(cup gabu) disse...

nossa...demais realmente me prendi de certa forma nesse texto que nem um chamado da minha mãe falando "vem comer o bolo que eu acabei de fazer" não me fez parar de ler esse último ... e realmente depois de pegar o meu pedaço de bolo de chocolate e um copo de Coca Cola, eu voltei a ler.. e fiquei realmente de ler mais(pedindo demais, eu sei!)e quando escutei Patience(do Gun's)não sei se você já sentiu isso mais parece que a música se encaixa na sua condição atual, sua vida agora...obrigada por me mostrar essa nova visão de uma parte da minha vida...
bjos/abraços (aluna que você possivelmente lembre...do 8ano A.. Letí... (cup gabu) prefiro assim...

Fabi disse...

Vc está viva! Mortos estão eles! Algumas vezes é preciso se fingir de morta tb...